sábado, 20 de janeiro de 2018

575 Eu também quero falar







Eu também quero falar. 

Aos dez anos de idade mais ou menos eu fui bulinada por um grande amigo do meu pai sem saber nem pra que que o meu órgão genital existia.
Gostei.
Não contei pra ninguém por sentir que era esquisito aquilo.

Aos seis anos de idade já brincava de mamãe e papai ou de médico sei lá com total consentimento de ambas as partes. Gostava muito. Tanto que lembro bem do nome e das feições do meu companheiro de brincadeira até hoje, lembro com carinho.

Não entendi quando meu pai falou pra tomar cuidado com um homem que vinha olhar nossas brincadeiras de roda no quintal sem muros do prediozinho de três andares que a gente morava em Ipanema.

Não entendi quando comecei a andar sozinha pela rua porque a minha mãe falava pra tomar cuidado com os homens.

Muitos abriram a barriguilha em diversas situações me mostando aquele orgão que passou a ser assustador e desde então aí entendi ser necessário o cuidado mas não sabia nem como fazer isso.

Grávida do meu primeiro filho, de barrigão, aconteceu o mesmo no metrô de Paris, um homem me mostrou o pau discretamente em público, achei aquilo no mínimo doido.

Na minha segunda gravidez no Rio um motorista de taxi fez o mesmo, abri a porta do carro e saí correndo.

Uma vez meu pai que era bipolar em pleno surto na minha casa também arregaçou a calça, fiquei bem tranqüila, achei até engraçado e chamei um psiquiatra amigo da família.

Entre 14 e 15 anos me apaixonei por um homem de 27 e quis transar. Forcei um pouco a barra pois ele é que ficou assustado com a minha, digamos assim, liberdade de judia educada sem pecado, porém atendeu o meu desejo com excelência.

Fomos condenados na época pela ditadura, presos por outros motivos, mas na minha biografia, a minha chamada, acho lindo, defloração, estará para sempre por uma, digamos assim, coincidência de momento, condenada por prisão, tortura, término forçado do namoro, exílio e enlouquecimento. Sofri trauma mas não morri por causa disso. Fui buscar autoconhecimento, espiritualidade.

Sou afetiva, me apaixono invariavelmente pelos homens com quem consumo ato sexual. Sou devota do falo, que considero libertador, amo ser penetrada imensidão a dentro. Sinto respeito e gratidão por quem me elege para essa dança mesmo que por apenas algumas horas. Tenho em geral, quanto mais velha, menos porém melhores experiências nesse sentido.

Adoro homens, mas eles são inaccessíveis, escorrem das minhas mãos e alçam vôo como passarinhos sempre buscando rapidamente outro pouso. Tenho uma dificuldade real incompreensível, incorrigível e cotidiana de integra-los no meu dia a dia. Sofro por isso. Sou totalmente inábil para agarra-los a todo custo com fervor. Talvez falta em mim a capacidade de me oferecer como terra fértil, acolhedora, nutridora, paciente como uma boa mulher deve ser, sei lá...

Aprendi com muito custo a selecionar, a escolher ao ser escolhida, a beijar ao ser beijada, a pensar um pouquinho antes de arrancar a roupa e entregar, agora sei, o ouro. Mas quase nunca acerto, ainda sou enganada. Nenhum homem se dispôs a satisfazer minha carência. Agradeço. Isso forjou minha auto suficiência não sei se boa ou ruim. Vivo minha incompletude sem drama.

Não sou bela adormecida não preciso de beijo como despertador.
O beijo já me pega acordada.

Sou sortuda. Não lembro de momentos extremamente difíceis ou extremamente violentos. Nunca um homem me bateu gravemente. Nunca fui forçada. Mas fui machucada numa espécie de demonstração e provas da minha inferior inteligência em alguns quesitos. Ouvi várias vezes que era reprimida ao dizer não. Achei engraçado.

Em geral digo sim. Fui casada algumas vezes e hoje posso dizer com tranqüilidade que não fui talhada para manter esta instituição.

Devo ser uma esposa incompetente embora bem intencionada. Fui traída invariavelmente em todas as tentativas de viver uma relação fechada. Nenhum projeto de família ou construção de vida funcionou com companhia monogâmica masculina na minha vida. Criei bem meus filhos com pouca ajuda, sem reclamações, estou só constatando. Isso forjou belamente meu espírito independente.

Porém nunca senti vontade de tomar a iniciativa de cometer infidelidade antes de ver o sinal verde previamente aceso.

O sinal verde que acendeu inúmeras vezes na minha juventude, geração amor livre, pílula, onde a própria palavra traição foi questionada.

Traição é quando um projeto de vida é boicotado.

Claro, sei que existem traições de todo tamanho e colorido. Prefiro a palavra adultério que vem da palavra adulto, isto é, é algo próprio do adulto cometer. Não estou acusando ninguém. Perdoo eternamente meus companheiros, namorados, amantes, maridos. Tenho lembranças intensas, boas, tristes, péssimas não importa. Não faço julgamento e sou assumidamente autora dos meus roteiros de vida. Sou grata pelos imensos aprendizados que todos estes professores me ofereceram. Me tornei mulher ao lado deles. Às vezes abusada, outras vezes nem tanto.
Amadureci, envelheci e agora aceito que alguma coisa em mim provoca traição nos homens, mas é inconsciente não sei explicar. Todos meus companheiros me machucaram, me desprezaram e me deixaram. Uma invariável. Isso desenhou em mim um trajeto da ingênua até a forte. Com os quem tive filho ou com os sem filho, nenhum homem quis ficar ao meu lado. Talvez porque meu carinho não fosse de esposa, fosse mais do tipo de mulher da rua, é uma hipótese. Homens separam mulher de casa e mulher de rua, não separam?

Mas nem sempre fui realmente traída nessas traições. Algumas delas me remeteram a um fundo mais honesto de mim mesma, a uma ferida construtiva do tipo psicanalítico. Outras acusaram insuficiências irreais, me humilharam pelas minhas limitações, sabotaram minha potência e me puxaram pra baixo. Detectei e sai fora por livre e espontânea vontade.

Não sei explicar bem. Ou sou insuficiente mesmo para o amor duradouro por negligência, preguiça, liberdade, loucura, irreverência, ou como diria a minha avó não tive sorte no amor, ou se no fundo meu desejo de poesia me inabilita para relacionamentos institucionalizados.

Ultimamente senti, depois de velha, pela primeira vez dificuldade de desistir de um relacionamento amoroso. Não aceitei o fato dele ter partido pra outra praia sem aviso prévio e perdi o controle da situação. Foi por conta de um motivo secreto que não veio à tona? Fiquei obcecada vasculhando o motivo sem sucesso ou foi simplesmente por causa do medo da velhice solitária? Não tenho nada contra trabalhos domésticos e gosto de uma casa arrumadinha, não é isso.

Mas não estou só, nem infeliz, nem me sinto fracassada. Sou amor da cabeça aos pés. E só eu sei as emoções que vivi e ainda pretendo viver.

Fiz despacho para desenvolver mais empatia com o princípio masculino, por enquanto sem muito resultado aparente, mas sem perder a esperança. Vou querer sempre entender melhor os homens, afinal tenho dois filhos. Das seis grandes deusas gregas só uma investiu em manter seu casamento, e mesmo assim por um preço bem alto.

Tudo isso pra dizer que os homens assim como as mulheres sairão ganhando desses novos paradigmas não patriarcais, ou melhor, não dicotômicos, priorizando o cuidar, que a virada ecológica nos aponta. Torço por nós.





*******

Rute Casoy escreveu
e publicou
este texto-poesia,
que me tocou profundamente.

Pedi permissão a Rute
e, autorizado,
compartilho, agora, esta leitura.

Sou grato a Rute
e a você,
pela sua leitura, sua escuta
e afetuoso interesse.

Vidas boas pra todos nós.
Merecemos.

*******


Gravação caseira, Luiz Fernando Sarmento






Nenhum comentário:

Postar um comentário