permaneço criança
Permaneço criança,
fantasiado de adulto. Sinto hoje minha criança presente em tudo o que sou e
faço. Amadurecendo, aprendo agora gostar de mim. Reconheço – recordo que fiz o melhor que
soube, que pude em quase, se não todos, momentos da minha vida.
Depois, horas
dançantes, desejos fortes. Os apertos de mãos, o bate-coxas, os rostos colados,
os beijos de língua, as mãos nos peitos. A iniciação no bequinho dos meninos, o
risco, o frisson, o gozo rápido. Sempre presente, proibido – um tanto
fora, um tanto dentro de mim – o sexo.
Aos doze, inda anos
50, para ganhar um pouco, vendi cestas de natal. Que alegria um dinheirinho
fruto do meu trabalho. Depois, lá pelos catorze, aulas de matemática pro filho
do representante da Brahma na região, que me contratou depois como auxiliar
administrativo.
Fiz o segundo
científico em Belorizonte, o primeiro e terceiro em Montes Claros. Vestibular –
não passei em BH – escolhi, mesmo sem saber o que era, economia e lá fui eu pra
Brasília.
Dei aulas de
matemática à noite no Gama, fui monitor de estatística na UnB, estagiário no
Ministério da Agricultura, Socorro foi meu amor e com razão me deixou. Sai de
dois serviços públicos, errei como pequeno industrial de malhas. Arrisquei o
Rio.
Início dos anos setenta
Conjugado dividido
em Copa, um karman-ghia, paquera aleatória diária, sexo como objetivo.
Culpas misturadas com prazeres. Trabalho no Instituto de Colonização e Reforma
Agrária, o Incra, aqui responsável pela coordenação do treinamento e seleção de
quem cuidaria de fazer os levantamentos de dados em campo. O combinado era uma
passiva reforma agrária, através da taxação progressiva tanto das propriedades menores,
os minifúndios, quanto das propriedades maiores, os latifúndios. Maiores ou menores
em relação à área definida em cada microrregião como a suficiente para a
sobrevivência e desenvolvimento econômico de uma família trabalhadora.
Levantamento feito,
memória difusa, quem detinha o poder de assinar, decidir optou pela proteção
aos latifúndios. Larguei mais este serviço público, vendi o carro – já um fusca
– e, com Ana, pegamos o navio em direção incerta, hippies sem saber que
éramos.
Uma semana em
Barcelona, dez dias em Andorra acolhidos por um índio peruano, um frio danado,
atravessamos a Europa batendo a mão, carona pura até Amsterdam. Lá, centro da
cidade, na redlight, mulheres na vitrine, encontramos um quarto bom,
ambiente aquecido, chuveiro externo quentão, baratinho. Ana foi posar na escola
de desenho e pintura, eu aprender a bater perna.
O Kosmos, um
choque. Centro cultural para jovens holandeses, financiado pelo governo, duas moedas
pra entrar, de cara um salão grande, alguma fumaça com cheiro bom como os dos
bolos e tortas, música suave, pessoas calmas espalhadas. Outra porta, um forno
elétrico, barro à vontade para quem quisesse esculpir e levar. Depois um salão,
cubos grandes em muitos níveis, espaço para apresentações de artistas
passantes, asiáticos, europeus, africanos, latinos, americanos, de outros
mundos.
Desço escada, uma
cozinha com aquelas comidas estranhas, cheirosas, leves, caseiras, que depois
descobri macrobióticas e naturais. Sauna grandona, homens e mulheres conversam e
agem como se não estivessem nus. Tudo muito paraíso.
Noutro lugar, à
noite, o Paradiso. Coca e maconha oferecidos na calçada, música a mais moderna
adentro. Corri da coca, medroso de me apaixonar. Aos meus olhos tudo muito
leve, tudo muito puro. Alegria quase insuportável. Assim as portas se me
abriram para outras janelas.
Antes, em Brasília,
vislumbre de nova
vida. 1965, dezoito anos, meus tempos e afazeres por minha conta. Duzentos e trinta
professores demitidos, greve boa parte do ano na universidade. Estudos
intercalados com aventuras. A população masculina predominava.
Zona boêmia, rendez-vous
só fora do distrito federal. Pegava carona, lá ia eu mendigar por amor,
carinho, consideração. Bati errante, errado em portas erradas. Madrugadas
frias, solidão. Também por carência - necessidade de estar próximo a colegas,
de ser aceito - perdi no baralho muito de minhas mesadas.
Já no segundo ano,
monitor de estatística na universidade, estagiário de economia no Ministério da
Agricultura, professor de matemática para o ginasial de escola da Fundação Educacional
do Distrito Federal. Em 66 já tinha um fusquinha. Em 67 completei rapidinho todas
as matérias do currículo de Economia, fiz outras de Administração Pública enquanto
esperava o tempo mínimo para me diplomar.
Muito jovem aprendi
a ser bonzinho. Pra não apanhar, literal e simbolicamente. Como uma defesa diante
do mundo. Meu humor era leve, brincava fácil. Cedo percebi que podia escolher
meus rumos. Era só me responsabilizar pelos resultados do que fazia.
Atenção redobrada
ao que acontecia fora e dentro de mim, ao que era real e ao imaginado. Medos antecedendo
às decisões. Culpas depois das ações. A cada fugida da regra, da normalidade,
medos e culpas e reflexões. Erro e acerto, tateando atento, emimesmado. A regra
de ouro presente: não fazer a outro o que não desejo pra mim. Como auto
referência, meu humor. Se bem-humorado, vale, valeu. Se mal, o que está ao meu
alcance?
Luiz
Fernando Sarmento
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