mamãe
Após a morte de mamãe, minhas irmãs sugeriram
que eu escrevesse um necrológio.
1919. Nasce Heloisa. Vem para os
Anjos, família grande numa Montes Claros criança. Amizades profundas com primas
vizinhas de quintais. Tudo tranquilo neste porto protegido.
1928? Bum! Morre o pai, ficam sua mãe Antônia
e 8 filhos. O avô paterno, Antônio, orienta, distribui. Cada filho, um tio, um
parente.
1934, de novo, seu mundo treme. Com a irmã
Wanda, sós, vai pro lugar que não conhece, Salinas. Imagino inseguranças,
saudades, solidões. Vive compaixões, compartilhamentos, cria vínculos. Aprende
na vida, ensina no Grupo Escolar. Enamora Rodrigo.
1938, casa. Vêm quatro filhos. Cai a ficha,
acredita em si, toma as rédeas. 1948. Salinas fica pequena. Agora vejo, a
história como se repete – pra abrir caminhos de liberdade, distribui por um
tempo os filhos: Lina fica com Wanda, Stella com tia Odília, Luiz com d. Rosinha.
Rodrigo, o marido, cuida de si.
Mamãe dá o salto. João vai junto.
Belorizonte, Instituto de Educação, mergulha. Regressa, respira, arruma as malas,
barriguda de Heloisa Helena: volta às origens, Montes Claros, 1951. O marido, é
o possível, vai à luta em São João do Paraíso. Contribui de lá.
Só com os filhos, a mãe, como defesa,
controla. Tudo ou quase. Articula. Rodrigo retorna, a família recompleta.
Sempre, dá aulas, educa. Nos intervalos, costura, remenda, orienta, organiza.
1954. Nasce o D. João Antônio Pimenta,
Heloisa diretora, funda um Grupo Escolar. À noite dá aulas no Sesi. Por um
tempo, acumula o Colégio Diocesano. Conhece, reconhece gente, constrói
amizades. Cuida da família, corresponde aos que solicitam, dá as mãos, ensina,
ensina, educa, educa, trabalha, trabalha. Agora cuida também das normalistas:
ensina a ensinar.
Planta plantas, rega como planta e cultiva ideias,
conhecimentos, relações. Solidária em momentos necessários, fortalece o bem.
Guarda confidências. Reflete, aconselha. Direto e reto. Não deixa para amanhã o
que é de hoje. É consigo o que é com outros. Ama os próximos quase como aos
filhos.
Delegada de ensino. Gosta. Conversas e
conversas e decisões. Interage. Norte de Minas e capital. 42 municípios sob sua
tutela. Viaja, vai, vem, vai, vem. Modera, modela, representa. Articula para tornar
viável, realiza junto. Integra órgãos estaduais e cidades. Com a equipe,
consensua. Assim, 50 anos de trabalho efetivo. E mais 18, aposentada, sutil nos
afetos, atenta, pronta para escutar, pensar, falar, agir.
Em toda a vida, emociona-se com serenatas e boas
conversas ao anoitecer. Tem mão boa para plantar. Cava, semeia, cuida. Adora
uma arrumação. Quem estiver perto entra na roda. Nos momentos mais diversos,
exercita a solidariedade, constrói vínculos, valoriza amizades.
2002. Gasto, o corpo cansa. Rápida como
sempre, prevê, organiza, distribui o que suou. E vai. Minha mãe permanece em
mim, em nós.
Passado um tempo,
quanto mais vivo, cultivo minha mãe boa. Caem
em névoa os beliscões, os olhares determinantes, as limitações. Sinto que me
compreendo quando compreendo mamãe. E olha que, raivoso, briguei com ela um mês
antes de sua morte. Mamãe estava com câncer brabo, ali em órgãos que filtram,
se espalhando. Num momento, ela, aos meus olhos, maltratou uma moça que dela
cuidava. Eu – que nunca lhe havia falado grosso – fui duro, impulsivo, gritei
com mamãe. Ela ali, me olhando estupefata, de baixo pra cima, da sua provisória
cadeira de rodas. Nos dias seguintes, emudeceu comigo, não respondia a meus
“benção, mamãe?”. Diante de minha insistência, foi clara: “Perdoar, perdoo. Mas
esquecer, não esqueço.”.
Em relação a mamãe, não sei explicar direito,
sei que meu coração está cada vez mais tranquilo. Desconfio que é porque fui
sincero comigo mesmo, com ela. Como fui proativo em muitos momentos que tomei a
iniciativa do abraço, do beijo, da palavra doce. Parece que, como mamãe, sou assim,
variado também em doce e amargo.
Luiz Fernando Sarmento
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